Ainda o Minotauro
caminha pelo labirinto.
Longe da morada de Dédalo,
a cicatriz de Teseu no peito e
o novelo de Ariadne nos dedos.
À luz do dia, o Minotauro vacila.
Os pés machucados pelo asfalto,
os ouvidos assustados por buzinas,
gritos, balas perdidas, um estupro
em cada esquina.
De repente, o Minotauro se esquiva
do carro, do ônibus, do caminhão
e da polícia.
A besta fera foge da pista.
Na calçada, se angustia:
uma criança morre de fome e outra
assassina.
Mais uma cena lhe fere a vista:
sete belos rapazes, sete virgens noivas;
a noite que se estendeu no beco
tinha cheiro de chacina.
Por entre arranha-céus e avenidas,
o filho de Pasifae desatina.
É de dor, de raiva, é de medo
que ele grita.
Assim, notamos que havia,
entre a gente da Cidade,
outro monstro que gemia.
No meio do olhar alheio,
o Minotauro, então, de mim
se aproxima.
Seus olhos ardem,
uma lágrima floresce.
O Sol desce e o príncipe Astérion
se inclina.
Com a cabeça no meu colo,
ele rumina enquanto lhe canto
uma cantiga.
“Esta é a Cidade que os pais
de nossos pais fundaram;
que eu e meus irmãos expandimos;
que os filhos de nossos filhos herdarão.
Esta é a Cidade que construímos
com cimento e sangue
com suor e excremento.
Esta é a Cidade em que vivemos.
É aqui que nos matamos.”
Um velho brada, uma mulher xinga
o executivo escarra, o mendigo se agita,
os estudantes uniformizados gargalham,
a turba em uníssono clama:
“LINCHA!”
***
Mesmo depois de termos comido sua carne,
eu sei que foi o Minotauro quem venceu.
Em nossa boca, ficou o gosto de cinzas e gasolina.
Em minhas mãos, um novelo de lã
branca e limpa.